Destempero Crónico

(programa de festas e estado das coisas)

01 fevereiro 2008

Coluna vertical ou a nata da nação



Hoje é o centésimo aniversário do momento mais fulcral do século XX português. Mais do que tecer considerações historiográficas ou políticas (frequentemente sinónimas como se sabe), apetece-me lembrar a data como a manifestação mais clara do sintoma que marcou na face a condição sociológica de ser português: o triunfo da calúnia, ou a impunidade da prevaricação.
Os debates sobre a dicotomia das formas de regime são inúteis. O estado chefiado por D. Carlos não foi abatido pelas balas do Buíça nem por uma qualquer acção militar posteriormente incensada por demagogos amargurados pelo que dezasseis anos de 1ª república trouxeram ao país (ou seja, uma repressão pior que a dos próprios) mas sim pela cobardia natural dos instalados (o pop devora-se mesmo a si próprio, nem que demore 64 anos a fazê-lo). Estes não ofereceram resistência à soldadesca abandonada à sua sorte pelos seus instigadores no topo da Avenida. O Almirante suicidou-se no dia 4 (um herói bizarro, para usar um eufemismo - é favor compará-lo com o comportamento do príncipe real, D. Luís Filipe, há cem anos atrás) e o golpe, de cariz social revolucionário (minoritário e ilegítimo), tem a sua melhor descrição no facto do próprio Lenine o ter mencionado – por três vezes – como modelo aos seus bolcheviques. Para quem apreciar a história da cultura, trata-se da única vitória francesa sobre os germânicos no século XX, com resultados piores dos da incursão das tropas do corso no século anterior, ou seja, cem anos de autoritarismo político mole, com os poderosos e encapotado, com os necessitados.
D. Carlos, não obstante a avalanche de difamações que lhe fizeram em vida e na morte, não tem, simplesmente, um único par político no país até ao advento do General Ramalho Eanes. Monarca constitucional por excelência, pagou com o sangue a sua bonomia, que o levou a tomar uma carruagem descoberta naquele dia, a sua firmeza de carácter, que o levou a demitir catervas de ineptos, que nunca lho perdoaram, o seu realismo honesto, que lhe valeu a estúpida demagogia dos republicanos depois do ultimato inglês e o seu epicurismo, que, quer os serviçais da padralhada, quer os aspirantes a Robespierre, lhe invejavam, porque os diminuía. Artista sociável e cientista instruído cujas obras perduraram apesar do que se lhe seguiu, estadista participativo e informado, homem cosmopolita e amante da modernidade, da mesa e da cama, esmagava dialecticamente os complexados mentores da opressão popular e do anti clericalismo. Qualquer desvio é um crime, como diz o rebanho à ovelha tresmalhada.
Os sucessores de D. Manuel II tiveram para apresentar após a deposição deste a retracção dos direitos de voto, a perseguição religiosa, o colapso económico efectivo, a imolação de uma geração inteira ao gás mostarda e a afirmação consciente do marimbanço na expressão da vontade popular. O melhor exemplo de tudo isto é o facto de que foi sob a égide de D. Carlos que a lei da separação entre o estado e a igreja começou a ser preparada.
A instituição e a adopção desinformada da "ética republicana", que mais não é do que uma versão preambular do juspositivismo Soviético, ajudada pelo péssimo serviço prestado à sua memória pelos vários idiotas que se afirmaram seus defensores (e que provam a excepcionalidade do monarca, dada a propensão das elites sociais portuguesas para a ignorância) não conseguiram apagar o seu maior feito, desta vez literário, se bem que sucinto, ou mesmo liminar. Alguém conhece uma descrição melhor e mais actual deste sítio?

08 fevereiro 2007

A retoma da posição erecta

Posto que já não escrevo nada há muito tempo, decidi valer-me deste sítio para dizer que, para suprir a falta de coluna vertebral do chefe do executivo, não nos resta outra coisa senão apanhar uma molha no domingo. Votarei, obviamente, Sim. Oxalá isso tenha como resultado o fim do tempo das bruxas.

31 março 2006

Crónica dos temperos

O caril, ou uma polissemia tricontinental

Para aumentar o picante desta página, inauguro esta secção com umas quantas constatações sobre o caril, o “tempero” que não é bem assim. Começando pela sua etimologia, é-lhe atribuída uma origem (“kari”, que significa “molho picante”) tamil, a etnia do sul da Índia e do Sri Lanka, a sua primeira referência na bibliografia nacional encontra-se num livro bastante obscuro do século XVII, a “Arte da cozinha”, que descreve um pó picante de pimentão moído, acepção que geralmente prevalece no uso contemporâneo da palavra por aqui. Por sua vez, a primeira receita de molho picante que se conhece é a de um acompanhamento para carne no pão, que foi descoberta perto de Babilónia, na Mesopotâmia, em placas de escrita cuneiforme feitas pelos sumérios que datam de 1700 AC, prato esse que seria, provavelmente, uma oferenda ao deus Marduk.
Para complicar as coisas, os antigos senhores europeus da Índia, os ingleses, constataram que a origem do termo que empregam para descrever uma coisa ligeiramente diferente, “curry” não provém dali, nem é uma importação do termo português, como alguns professores ultranacionalistas de português dizem por vezes às suas carochinhas (carochinhas essas que, na idade média, eram moídas para fazer grã, outro pó vermelho, um cosmético – mas isso é outra história). Na realidade, descende de “cury” (inglês arcaico importado do francês “cuire” que quer dizer “cozinhar, ferver, cozer, grelhar”), palavra que aparece no primeiro livro de cozinha inglês (sim, ela existe e é boa, contrariamente à “vox populi”) de 1390, chamado “The Forme of Cury”.
Talvez isto explique a diferença de conceitos entre os dois veteranos do subcontinente: enquanto nós pensamos num tempero picante, os ingleses definem o “curry” como um prato com especiarias frescas e secas, cozinhado com óleo, com um molho de puré de cebolas, alho e gengibre, podendo a variedade das especiarias ser extensa, sendo que as mais comuns são o pimentão, o cominho, os coentros e a curcuma, sendo também frequente o uso de iogurte, natas e amendoins. Para o nosso conceito (o de pó picante) usam “curry powder”. Para aumentar a ironia de tudo isto, na Índia o termo é (pouco) usado por apropriação do inglês, para descrever genericamente “molho, guisado ou sopa”. Talvez isto explique a posterior diferença do conceito no terceiro vértice do triângulo dos seus amantes, a África Oriental (para onde, como é sabido, emigraram muitos indianos: há um filme bastante bom sobre este assunto, “Mississippi Masala”). Aí, caril/curry quer apenas dizer “guisado de hortaliças”, sendo comum usar amendoim pilado como base do prato, por vezes complementado por pequenas quantidades de carne ou peixe, normalmente secos.
Para não picar mais a paciência de quem lê, esta receita. O seu autor – nascido em Calcutá - é William Makepeace Thackeray (1811-1863), amigo de Goethe, rival de Dickens, autor de Vanity Fair, The Luck of Barry Lyndon e Kitchen Melodies, obra da qual foi extraída:


A poem to curry (1846)

Three pounds of veal my darling girl prepares,
And chops it nicely into little squares;
Five onions next prures the little minx
(The biggest are the best, her Samiwel thinks),
And Epping butter nearly half a pound,
And stews them in a pan until they’re brown’d.
What’s next my dexterous little girl will do?
She pops the meat into the savoury stew,
With curry-powder table-spoonfuls three,
And milk a pint (the richest that may be),
And, when the dish has stewed for half an hour,
A lemon’s ready juice she’ll o’er it pour.
Then, bless her! Then she gives the luscious pot
A very gentle boil - and serves quite hot.
PS - Beef, mutton, rabbit, if you wish,
Lobsters, or prawns, or any kind fish,
Are fit to make a CURRY. ‘Tis, when done,
A dish for Emperors to feed upon.

27 março 2006

Coluna Vertical, ou a nata da nação

Para estrear esta secção, que se quer de periodicidade completamente irregular, de evocação dos portugueses dotados do título em epígrafe (que escasseiam tanto quanto o espírito cívico de noventa por cento da população) seguem-se algumas linhas dedicadas ao português mais corajoso do século XX:
Nascido em 1906, em S.Simão da Brogueira, Torres Novas (nas imediações do famoso paúl do boquilobo, hoje em dia zona paisagística protegida e que merece sem dúvida uma visita) e assassinado pela PIDE numa emboscada, em data incerta de Fevereiro de 1965, o General Sem Medo é uma figura incontornável da história contemporânea de Portugal. São do conhecimento geral a história da fraude eleitoral de que foi vítima, as peripécias do seu exílio (no Brasil, em alguns países europeus e na Argélia) e as circunstâncias da sua morte. A sua célebre frase relativa ao professor-marçano, proferida na conferência de imprensa que levou a cabo no desaparecido Chave d'Ouro, aquando do anúncio da sua candidatura, entrou de pleno direito nos anais da retórica portuguesa e ressoa ainda hoje como exemplo de clareza e coragem políticas que muito jeito dariam aos actuais encarregados da res publica. Há, no entanto, um menor conhecimento público dos factos da sua carreira militar, diplomática e administrativa que me proponho evocar.
Delgado foi um brilhante aluno da Academia Militar (facto pouco sabido, a sua arma foi inicialmente a artilharia) e demonstrou desde cedo uma coragem física pouco comum. Conta-se que, ainda cadete, protegeu um camarada da prepotência de um sargento de instrução particularmente sádico e que este, vendo a coisa mal parada, disparou sobre ele, ferindo-o. Após ter tido alta, foi à procura desse mesmo sargento e, apanhando-o desarmado, enviou-o para o hospital com as mãos nuas. Tendo sido um dos pioneiros da aviação em Portugal (foi um dos primeiros a obter o brevet e um ás com vários feitos dignos de registo, entre os quais várias viagens intercontinentais com destinos asiáticos e africanos), foi também protagonista de um dos primeiros acidentes aéreos no país, do qual escapou com vida, voltando a voar não obstante. Apoiante inicial do regime de 28 de Maio (devido à sua condição de oficial mais novo entre os golpistas, foi ele a entrar em Lisboa como porta-estandarte da coluna militar dos vencedores), serviu-o em vários cargos militares, politícos, diplomáticos e administrativos. Foi o representante português nas negociações com os aliados para a cedência das bases nos Açores (o que lhe valeu ser condecorado pelos britânicos com a CBE, britânicos esses que salientaram que arriscou a sua carreira pela causa dos aliados) e adido militar em Washington (o que lhe permitiu testemunhar uma das primeiras explosões nucleares no Novo México e lhe valeu outra condecoração, concedida pelos americanos). Grande parte dos seus biógrafos afirma que foi esta estadia nos Estados Unidos que o convenceu da obsolescência do regime e criou nele a disposição para o alterar. Relativamente ao crédito que o General granjeava nas esferas políticas norte-americanas e britânicas é oportuno recordar que Kennedy desmentiu frontalmente a teoria do regime relativa ao episódio do Santa Maria (considerado e propalado como um acto de pirataria), afirmando acerca do mesmo que se tratava de uma acção de cariz político, e que o estado novo se deparou com um embaraço diplomático de relevo aquando da recusa da entrada em Portugal do líder do partido Trabalhista, o qual, convidado por Delgado, tencionava visitar o país para proferir conferências e constatar in loco a respectiva situação política.
Além da sua fulgurante carreira militar (foi o General mais novo da Força Aérea, promovido ao posto com apenas 47 anos), Delgado foi também um técnico competente. Foi secretário da aviação civil, e a ele se devem a fundação da TAP (em 1945) e a instauração das ligações aéreas com as colónias (a famosa "linha imperial" com escala em Angola e término em Moçambique), inauguradas em 1946. Foi também escritor e dramaturgo. Uma das suas obras tem um dos melhores títulos da bibliografia portuguesa: "Da pulhice do Homo sapiens".
Promovido a Marechal a título póstumo em 1990, Humberto Delgado está sepultado no Panteão Nacional, em Santa Engrácia.

24 março 2006

Velhos (des)conhecidos

Se há lugar comum que os portugueses gostam de aplicar a si próprios é o de conhecerem África muito bem. Será. Já foi mais. Terá sido. Quanto a mim, há quem o possa afirmar com mais fundamento. O senhor que se segue pertence a este grupo. Que Ogun o guarde (acho que já o fez).
Eu bem tento informar-me; assumo, sem pejo, uma atracção pelo inteiro continente que a razão não explica e continuo convencido de que a medicina tropical é tão importante quanto a antropologia histórica no que concerne a resolução dos problemas que assolam a esmagadora maioria dos seus habitantes. Conhecendo alguma da história da região, não sinto nenhum complexo colonial. Mas tenho a impressão de que, pelo menos, um reordenamento administrativo (ou mesmo político, porque um de cariz geo-cartográfico não passa de uma efabulação) que contemplasse as estruturas que estes

http://www.tamarin.com/king/kindire1.html

senhores encabeçam, iria mitigar os tórbidos que por lá se vivem desde antes da chegada dos europeus (e dos árabes; e dos chineses - mas essa é uma história para outra ocasião). Atente-se, por exemplo, na melhoria da situação das populações da Guiné-Bissau desde a restauração dos sobas. Ou na influência concreta que alguns dos retratados nunca deixaram de ter (desde o período do tráfico, passando pelo colonialismo, até aos - e durante os - anos do grotesco "marxismo africano").
Ah, a internet! Exotismo à nossa medida. Viajar sem sair do quarto. Se aquele chato do Garrett soubesse...

23 março 2006

Bordoada primeira

A propósito da conversa de encher do fulano (o mesmo a quem uns quantos rapazes do grande monolito vermelho, "infiltrados" na Docapesca, chegaram e sobraram para estragar o arranjinho anterior - e eu até gosto de vela) que quer vender ao estado a segunda central nuclear em território europeu (a outra é na Finlândia) dos últimos vinte anos: eis o que explica tal hiato nesse comércio.

http://www.pixelpress.org/chernobyl/index.html

Recomendam-se estômago para ver e trambelho aos politicantes.

Razão de ser

Até ver, desancar quem me desanca a paciência: a república, os iletrados, os desonestos, os mal-educados e os pouco asseados; são funestos. Tecer elogios a quem mos merece. Ler novas de quem não me esquece. Cultivar alguns gostos, aprender o que puder. Dar a saber o que penso a quem quiser. Falar de letras, de lazer, de ócio e dos desvarios do poder, de sons e de imagens, de gastronomia e de viagens. Criticar o que, a meu ver, está mal. Entoar loas ao Sporting Clube de Portugal.