Destempero Crónico

(programa de festas e estado das coisas)

27 março 2006

Coluna Vertical, ou a nata da nação

Para estrear esta secção, que se quer de periodicidade completamente irregular, de evocação dos portugueses dotados do título em epígrafe (que escasseiam tanto quanto o espírito cívico de noventa por cento da população) seguem-se algumas linhas dedicadas ao português mais corajoso do século XX:
Nascido em 1906, em S.Simão da Brogueira, Torres Novas (nas imediações do famoso paúl do boquilobo, hoje em dia zona paisagística protegida e que merece sem dúvida uma visita) e assassinado pela PIDE numa emboscada, em data incerta de Fevereiro de 1965, o General Sem Medo é uma figura incontornável da história contemporânea de Portugal. São do conhecimento geral a história da fraude eleitoral de que foi vítima, as peripécias do seu exílio (no Brasil, em alguns países europeus e na Argélia) e as circunstâncias da sua morte. A sua célebre frase relativa ao professor-marçano, proferida na conferência de imprensa que levou a cabo no desaparecido Chave d'Ouro, aquando do anúncio da sua candidatura, entrou de pleno direito nos anais da retórica portuguesa e ressoa ainda hoje como exemplo de clareza e coragem políticas que muito jeito dariam aos actuais encarregados da res publica. Há, no entanto, um menor conhecimento público dos factos da sua carreira militar, diplomática e administrativa que me proponho evocar.
Delgado foi um brilhante aluno da Academia Militar (facto pouco sabido, a sua arma foi inicialmente a artilharia) e demonstrou desde cedo uma coragem física pouco comum. Conta-se que, ainda cadete, protegeu um camarada da prepotência de um sargento de instrução particularmente sádico e que este, vendo a coisa mal parada, disparou sobre ele, ferindo-o. Após ter tido alta, foi à procura desse mesmo sargento e, apanhando-o desarmado, enviou-o para o hospital com as mãos nuas. Tendo sido um dos pioneiros da aviação em Portugal (foi um dos primeiros a obter o brevet e um ás com vários feitos dignos de registo, entre os quais várias viagens intercontinentais com destinos asiáticos e africanos), foi também protagonista de um dos primeiros acidentes aéreos no país, do qual escapou com vida, voltando a voar não obstante. Apoiante inicial do regime de 28 de Maio (devido à sua condição de oficial mais novo entre os golpistas, foi ele a entrar em Lisboa como porta-estandarte da coluna militar dos vencedores), serviu-o em vários cargos militares, politícos, diplomáticos e administrativos. Foi o representante português nas negociações com os aliados para a cedência das bases nos Açores (o que lhe valeu ser condecorado pelos britânicos com a CBE, britânicos esses que salientaram que arriscou a sua carreira pela causa dos aliados) e adido militar em Washington (o que lhe permitiu testemunhar uma das primeiras explosões nucleares no Novo México e lhe valeu outra condecoração, concedida pelos americanos). Grande parte dos seus biógrafos afirma que foi esta estadia nos Estados Unidos que o convenceu da obsolescência do regime e criou nele a disposição para o alterar. Relativamente ao crédito que o General granjeava nas esferas políticas norte-americanas e britânicas é oportuno recordar que Kennedy desmentiu frontalmente a teoria do regime relativa ao episódio do Santa Maria (considerado e propalado como um acto de pirataria), afirmando acerca do mesmo que se tratava de uma acção de cariz político, e que o estado novo se deparou com um embaraço diplomático de relevo aquando da recusa da entrada em Portugal do líder do partido Trabalhista, o qual, convidado por Delgado, tencionava visitar o país para proferir conferências e constatar in loco a respectiva situação política.
Além da sua fulgurante carreira militar (foi o General mais novo da Força Aérea, promovido ao posto com apenas 47 anos), Delgado foi também um técnico competente. Foi secretário da aviação civil, e a ele se devem a fundação da TAP (em 1945) e a instauração das ligações aéreas com as colónias (a famosa "linha imperial" com escala em Angola e término em Moçambique), inauguradas em 1946. Foi também escritor e dramaturgo. Uma das suas obras tem um dos melhores títulos da bibliografia portuguesa: "Da pulhice do Homo sapiens".
Promovido a Marechal a título póstumo em 1990, Humberto Delgado está sepultado no Panteão Nacional, em Santa Engrácia.

5 Comments:

  • At 9:37 da manhã, Blogger Rui said…

    Parabéns pelo blog e no caso concreto por este post que revelou aspectos que não conhecia de uma das figuras historicas mais injustamente esquecida pelos portugueses.

     
  • At 12:50 da tarde, Blogger Antão Bordoada said…

    Muito obrigado. (E dei uma olhadela ao seu, que me parece muito interessante. Lá voltarei.)
    É curioso, no meu 'programa das festas' consta a intenção de escrever alguma coisa sobre a história dos portugueses no Rio de la Plata (e mais além - houve um que chegou ao Chaco antes dos espanhóis, mas escasseia-me o tempo para investigar).
    A pergunta impõe-se, porém: Peñarol ou Nacional? (Eu sou pelos primeiros...)

     
  • At 9:33 da manhã, Blogger Rui said…

    Eu sou pelo Defensor Sporting, e por razões estritamente familiares pelo Bolso (Nacional).

    Aguardarei com interesse os inputs sobre os portugueses na Provincia Cisplatina, eu próprio tenho uma serie de informação sobre as suas andanças por aquelas terras, sobretudo Colonia del Sacramento, mas o tempo livre tem sido investido no nosso Sporting.

    O Chaco (o Paraguaio, que é o que conheço) é o actual wild west da América do Sul. Eu entrei lá de caçadeira debaixo do banco e saí de lá a alta velocidade por razões de segurança... é uma realidade perturbadora numa zona do globo que tinha tudo para ser próspera e providenciar aos seus habitantes uma vida tranquila.

     
  • At 3:36 da tarde, Blogger Antão Bordoada said…

    O terceiro clube do país, certo? Não foi no Defensor que despontou o grande Francescoli antes de ir para o River? Julgo que foram eles a quebrar a "bipartidarização" de décadas do campeonato local com uma vitória em meados dos anos 70, não foi? Gosto muito dos bons jogadores - e dos bons prosadores - uruguaios.
    Também conheço alguns detalhes da história de Sacramento e da sua passagem para as mãos castelhanas mas quero conseguir contar a gesta de um 'Aguirre' - viu o clássico de Werner Herzog? - nacional, que contactou o império Inca antes dos verdugos de Pizarro.
    A inteira América Latina é um paradoxo (aproveito para sugerir a leitura de "Las venas abiertas de America Latina", de E. Galeano, que estou certo que conhece). Eu quero (hei-de) ir ao Perú e à Bolívia.

     
  • At 8:58 da tarde, Blogger Rui said…

    É efectivamente o 3º clube do país e foram os primeiros a quebrar a hegemonia dos grandes com uma liga para finais dos 70, não me lembro do ano exacto... mas o "príncipe" começou num dos rivais do Defensor, creio que no Wanderers, equipa do bairro do Prado e vizinhos do mais pequeno River Plate.

    De Galeano não conheço a obra literária, aliás a cultura não é própriamente um dos meus fortes, mas já li colunas de opinião suas e assisti a alguns debates na TV.

    Pessoalmente considero-o uma imagem perfeita do "tipico" militante de esquerda... a preocupação com o bem estar e a defesa dos mais desfavorecidos, arruinada por um posicionamento politico demasiado radical e na maioria dos casos, resultado de uma tentativa de acertar contas com o passado.

    Já as viagens que planeia recomendo-as, não tanto a da Bolivia (embora com pontos de muito interesse que apenas conheço de reportagens), mas sobretudo ao Peru, certamente o país mais interessante de conhecer, juntamente com o México.

     

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