Crónica dos temperos
O caril, ou uma polissemia tricontinental
Para aumentar o picante desta página, inauguro esta secção com umas quantas constatações sobre o caril, o “tempero” que não é bem assim. Começando pela sua etimologia, é-lhe atribuída uma origem (“kari”, que significa “molho picante”) tamil, a etnia do sul da Índia e do Sri Lanka, a sua primeira referência na bibliografia nacional encontra-se num livro bastante obscuro do século XVII, a “Arte da cozinha”, que descreve um pó picante de pimentão moído, acepção que geralmente prevalece no uso contemporâneo da palavra por aqui. Por sua vez, a primeira receita de molho picante que se conhece é a de um acompanhamento para carne no pão, que foi descoberta perto de Babilónia, na Mesopotâmia, em placas de escrita cuneiforme feitas pelos sumérios que datam de 1700 AC, prato esse que seria, provavelmente, uma oferenda ao deus Marduk.
Para complicar as coisas, os antigos senhores europeus da Índia, os ingleses, constataram que a origem do termo que empregam para descrever uma coisa ligeiramente diferente, “curry” não provém dali, nem é uma importação do termo português, como alguns professores ultranacionalistas de português dizem por vezes às suas carochinhas (carochinhas essas que, na idade média, eram moídas para fazer grã, outro pó vermelho, um cosmético – mas isso é outra história). Na realidade, descende de “cury” (inglês arcaico importado do francês “cuire” que quer dizer “cozinhar, ferver, cozer, grelhar”), palavra que aparece no primeiro livro de cozinha inglês (sim, ela existe e é boa, contrariamente à “vox populi”) de 1390, chamado “The Forme of Cury”.
Talvez isto explique a diferença de conceitos entre os dois veteranos do subcontinente: enquanto nós pensamos num tempero picante, os ingleses definem o “curry” como um prato com especiarias frescas e secas, cozinhado com óleo, com um molho de puré de cebolas, alho e gengibre, podendo a variedade das especiarias ser extensa, sendo que as mais comuns são o pimentão, o cominho, os coentros e a curcuma, sendo também frequente o uso de iogurte, natas e amendoins. Para o nosso conceito (o de pó picante) usam “curry powder”. Para aumentar a ironia de tudo isto, na Índia o termo é (pouco) usado por apropriação do inglês, para descrever genericamente “molho, guisado ou sopa”. Talvez isto explique a posterior diferença do conceito no terceiro vértice do triângulo dos seus amantes, a África Oriental (para onde, como é sabido, emigraram muitos indianos: há um filme bastante bom sobre este assunto, “Mississippi Masala”). Aí, caril/curry quer apenas dizer “guisado de hortaliças”, sendo comum usar amendoim pilado como base do prato, por vezes complementado por pequenas quantidades de carne ou peixe, normalmente secos.
Para não picar mais a paciência de quem lê, esta receita. O seu autor – nascido em Calcutá - é William Makepeace Thackeray (1811-1863), amigo de Goethe, rival de Dickens, autor de Vanity Fair, The Luck of Barry Lyndon e Kitchen Melodies, obra da qual foi extraída:
A poem to curry (1846)
Three pounds of veal my darling girl prepares,
And chops it nicely into little squares;
Five onions next prures the little minx
(The biggest are the best, her Samiwel thinks),
And Epping butter nearly half a pound,
And stews them in a pan until they’re brown’d.
What’s next my dexterous little girl will do?
She pops the meat into the savoury stew,
With curry-powder table-spoonfuls three,
And milk a pint (the richest that may be),
And, when the dish has stewed for half an hour,
A lemon’s ready juice she’ll o’er it pour.
Then, bless her! Then she gives the luscious pot
A very gentle boil - and serves quite hot.
PS - Beef, mutton, rabbit, if you wish,
Lobsters, or prawns, or any kind fish,
Are fit to make a CURRY. ‘Tis, when done,
A dish for Emperors to feed upon.
Para aumentar o picante desta página, inauguro esta secção com umas quantas constatações sobre o caril, o “tempero” que não é bem assim. Começando pela sua etimologia, é-lhe atribuída uma origem (“kari”, que significa “molho picante”) tamil, a etnia do sul da Índia e do Sri Lanka, a sua primeira referência na bibliografia nacional encontra-se num livro bastante obscuro do século XVII, a “Arte da cozinha”, que descreve um pó picante de pimentão moído, acepção que geralmente prevalece no uso contemporâneo da palavra por aqui. Por sua vez, a primeira receita de molho picante que se conhece é a de um acompanhamento para carne no pão, que foi descoberta perto de Babilónia, na Mesopotâmia, em placas de escrita cuneiforme feitas pelos sumérios que datam de 1700 AC, prato esse que seria, provavelmente, uma oferenda ao deus Marduk.
Para complicar as coisas, os antigos senhores europeus da Índia, os ingleses, constataram que a origem do termo que empregam para descrever uma coisa ligeiramente diferente, “curry” não provém dali, nem é uma importação do termo português, como alguns professores ultranacionalistas de português dizem por vezes às suas carochinhas (carochinhas essas que, na idade média, eram moídas para fazer grã, outro pó vermelho, um cosmético – mas isso é outra história). Na realidade, descende de “cury” (inglês arcaico importado do francês “cuire” que quer dizer “cozinhar, ferver, cozer, grelhar”), palavra que aparece no primeiro livro de cozinha inglês (sim, ela existe e é boa, contrariamente à “vox populi”) de 1390, chamado “The Forme of Cury”.
Talvez isto explique a diferença de conceitos entre os dois veteranos do subcontinente: enquanto nós pensamos num tempero picante, os ingleses definem o “curry” como um prato com especiarias frescas e secas, cozinhado com óleo, com um molho de puré de cebolas, alho e gengibre, podendo a variedade das especiarias ser extensa, sendo que as mais comuns são o pimentão, o cominho, os coentros e a curcuma, sendo também frequente o uso de iogurte, natas e amendoins. Para o nosso conceito (o de pó picante) usam “curry powder”. Para aumentar a ironia de tudo isto, na Índia o termo é (pouco) usado por apropriação do inglês, para descrever genericamente “molho, guisado ou sopa”. Talvez isto explique a posterior diferença do conceito no terceiro vértice do triângulo dos seus amantes, a África Oriental (para onde, como é sabido, emigraram muitos indianos: há um filme bastante bom sobre este assunto, “Mississippi Masala”). Aí, caril/curry quer apenas dizer “guisado de hortaliças”, sendo comum usar amendoim pilado como base do prato, por vezes complementado por pequenas quantidades de carne ou peixe, normalmente secos.
Para não picar mais a paciência de quem lê, esta receita. O seu autor – nascido em Calcutá - é William Makepeace Thackeray (1811-1863), amigo de Goethe, rival de Dickens, autor de Vanity Fair, The Luck of Barry Lyndon e Kitchen Melodies, obra da qual foi extraída:
A poem to curry (1846)
Three pounds of veal my darling girl prepares,
And chops it nicely into little squares;
Five onions next prures the little minx
(The biggest are the best, her Samiwel thinks),
And Epping butter nearly half a pound,
And stews them in a pan until they’re brown’d.
What’s next my dexterous little girl will do?
She pops the meat into the savoury stew,
With curry-powder table-spoonfuls three,
And milk a pint (the richest that may be),
And, when the dish has stewed for half an hour,
A lemon’s ready juice she’ll o’er it pour.
Then, bless her! Then she gives the luscious pot
A very gentle boil - and serves quite hot.
PS - Beef, mutton, rabbit, if you wish,
Lobsters, or prawns, or any kind fish,
Are fit to make a CURRY. ‘Tis, when done,
A dish for Emperors to feed upon.